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12 de dezembro de 2005

 

Um conto



A tartaruga
autor: El hombre maíz

Tinha um trabalho: Ser tartaruga. Levava incontáveis anos de atividade. Começara jovem, aos dezenove anos de idade quando começou a fazer parte de uma companhia de teatro de vanguarda. Lá foi selecionado por um próspero diretor surrealista ao papel de tartaruga na readaptação de uma obra clássica. Sua aparição era breve, seu personagem não tinha fala, aliás, depois foi descobrir que a tal da tartaruga nem existia no roteiro original, havia sido introduzida ali porque o moderno diretor assumia haver tido uma idéia genial, um pequeno detalhe, mas, que daria um toque especial à obra, coisa de artista.

Bem, esse sutil toque artístico a que se referia o diretor nada mais era que a cena em que o ator principal fazia um breve monólogo sobre a lentidão do passar do tempo na masmorra em que se encontrava enclausurado, seria melhor personificada se alguém vestido vulgarmente de tartaruga, simbolizando a lentidão, cruzasse o palco - em duas patas- caminhando lentamente. Nisso consistia a atuação do jovem ator.

O que o pequeno artista não esperava era que a peça fosse desde sua estréia suceso de público e crítica, e, que através dessa obra, cruzaria os palcos de todo o mundo e seria ovacionado de pé - vestido de tartaruga- junto com todo o seu grupo e garantiria assim uma considerável renda para seus futuros longos anos.

Foi uma época maravilhosa. Jovem, sonhador, popular, enfim, feliz. Tornou-se boêmio, rodeou-se de amigos e conquistou todas as mocinhas intelectuais que cruzaram seu caminho. A popularidade de sua companhia teatral havia lhe feito sentir-se estrela, se descuidou um pouco,o que quase culminou com sua expulsão do grupo, pois, segundo o diretor se via tanta alegria de viver em seu rosto, que não conseguia representar em seus poucos segundos de atuação toda a melancolia que requeria sua personagem.

Esses foram definitivamente outros tempos. Quem o visse hoje não o reconheceria. Toda suas ilusões se haviam acabado. Se encontrava velho e deprimido. Isso sim, a peça ainda era aclamada pelo público, porém, todo o elenco já havia sido renovado, nem o diretor era o mesmo, só ele permanecera. Ser tartaruga resumia toda a sua carreira artística. Nunca havia ido além. Se sentia medíocre, inútil e apático, o que contribuia muito para a representação de seu melancólico personagem, talvez por isso arrancava tantos elogios do novo diretor. - Bravo!Bravo -dizia - Isso sim que é uma tartaruga desprezível - Mas, não se dava conta de que não era encenação, estava realmente deprimido.

Já havia juntado dinheiro suficiente para aposentar-se, porém, havia dedicado toda sua vida aos prazeres juvenis e a ser tartaruga. Velho demais para os prazeres, o teatro passou a ser a única razão pela qual saia da cama. E lá ia o velho ator todos os dias contracenar a mesma obra pela enésima vez junto aos seus companheiros de profissão. Odiava tudo aquilo. Odiava o teatro, odiava o público que aplaudia aquela obra ridícula e odiava os atores de sua companhia, pois, invejava sua juventude e suas alegrias, principalmente o atual ator principal, um rapaz um tanto que afeminado, isso sim, talentoso, apaixonado pela arte, hábil nas expressões corporais e que adorava improvisar durante suas atuaçöes para ressaltar seu talento, um chato de galochas, vamos! Não era à toa que a simples presença desse rapaz causasse tanta ira ao ator tartaruga. Até que chegou aquela noite em que culminou todo esse sem fim de sensações desagradáveis que o velho ator guardava em si.

Seria uma noite de apresentações como outra qualquer, o auditório lotado, os atores concentrados e a tartaruga preparada. A obra se desenvolvia bem, o público aplaudia e logo chegou o momento da entrada do ansião em cena, seus poucos segundos de glória, e o que ele não esperava é que o jovem ator afeminado ousasse improvisar durante sua insignificante aparição, justo naquele pequeno espaço de tempo em que tudo que queria era que lhe deixassem em paz com sua inutilidade. E foi assim que, durante seu monólogo na masmorra que falava sobre a lentidão do passar do tempo, mas, que não fazia nenhuma referência direta à tartaruga, acrescentou:

- Oh, Tempo! Tu que recusas a apressar meu destino e caminha vagarosamente como uma horrenda e fétida tartaruga!

Aquilo vindo assim de maneira assim tão inesperada, enfureceu o velho ator:

- Vai tomar no cu, seu escroto!

Espanto no elenco, surpresa no público, o jovem não perde a pose:

- Sim! E não satisfeito em alongar minha penosa vida, parece que posso ouvir-lo me insultar com desprezível arrogância.

- Você quer apanhar, né, veadinho!? - Pof ! Dá um murro no jovem

Desespero no elenco. O público acha que é uma nova adaptação genial da obra e demonstra interesse -oh! Oh! exclamavam- O ator principal faz outra tentativa enquanto segue levando cacetes.

- Oh! Golpeia minha face. Essa é a representação viva de meu martírio. E se cada ano aqui enclausurado em sofrimento fosse uma bofetada do penoso tempo, espanca-me, pois há tempos vivo essa dor. - Pof! Pof! seguia o ansião alternando sopapos.

O elenco invade o palco, o público dá-se conta da real situação e se escandaliza vendo um senhor vestido de tartaruga dizer baixarias e atracar-se pelo chão com um rapaz que oferece pouca resistência e tenta em vão permanecer em seu personagem e convencer os incrédulos espectadores, de que tudo aquilo era ficção. O elenco agarra o velho ator que resiste em ser retirado do palco - Estou tendo meu momento, é o melhor dia de minha vida- pensava. Quando não possuia mais forças para resistir, aplica sua última investida contra o afeminado ator, se lança contra seu corpo e lhe arranca a orelha com uma mordida.

Agora resta no palco um rapaz ensangüentado estirado no solo. Ele se levanta horrorizado e se volta à platéia com os olhos úmidos:
-Tempo! Oh, tempo! Tu que tomas minha alma, minha alegria e minhas esperanças também devora-me o corpo...

Já era tarde e alguém sensato resolveu fechar as cortinas.

O acontecido foi notícia extraordinária. A polícia foi chamada e o ator tartaruga foi levado a julgamento. Seu advogado lhe defendeu alegando insanidade mental, e para isso havia chamado um psiquiatra como testemunha. Alegava o tal doutor que depois de tanto tempo interpretando uma tartaruga, o ansião já não distinguia ficção da realidade e passara a agir como o seu personagem.

Espanto na corte. O juiz não pode acreditar no que acaba de ouvir e toma a palavra

- Está tendando convencer-me de que esse senhor acredita ser uma tartaruga realmente? Pois saiba que meus filhos têm uma tartaruga em casa há anos e jamais notei nesse animal um comportamento tão feroz e imprudente como o do réu em questão.

Para isso o defensor do velho ator havia chamado um biólogo que deu completa razão ao psiquiatra. esclareceu que tartarugas são realmente seres muito agressivos. obviamente, são incapazes de causar algum dano devido à sua limitada estrutura corporal, que é a principal responsável por sua aparência dócil. No entanto, fosse dado a uma tartaruga uma estrutura humana e a veríamos atuar exatamente como atuou o réu naquela fatídica noite.

Mandaram-no a um hospício onde foi diagnosticado como incurável. Informaram às autoridades que sua mente estava tão tomada pela loucura que mais viável seria retirar sua porção humana do que sua porção tartaruga, infinitamente maior.

Assim fizeram. Modificaram sua alimentação e todas as manhãs o colocavam em um tanque de água para aprender a nadar. haviam decidido também não retirar sua fantasia de tartaruga, visto que poderia ser um choque muito forte deparar-se sem seu casco.

O velho recebia o tratamento sem manifestar-se em contra. Ainda que acreditava que isso de deixá-lo com a fantasia eles faziam só pra sacanear. Agora encontrava-se todavia mais melancólico. -Me transformaram em uma tartaruga - Pensava - O pior de tudo é que esses bichos vivem mais de duzentos anos e esses são apenas os primeiros dias.
***

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