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17 de janeiro de 2006

 

Contos


Morrer de infância
autor: El hombre maíz

Era uma vez um mundo onde seus habitantes morriam de infância. Não é que as pessoas nasciam velhas para logo morrerem de infância; nasciam pequeninos como nós mesmos, aliàs, os povoadores daquele mundo tinham uma vida muito parecida à nossa, com a diferença de que tinham duas infância, uma para nascer e outra para morrer. Nasciam, creciam, reproduziam-se, envelheciam, rejuvenesciam, reproduziam-se e morriam. Isso é, envelheciam até os sessenta e cinco anos para logo voltar a rejuvenescer até a morte.


E eis que os seres daquele planeta tinham a oportunidade de utilizar numa segunda juventude todo o conhecimento adquirido através de seus anos vividos e orgulhavam-se de possuir cento e dez anos de experiência num corpinho de vinte. De modo que, naquele mundo havia dois tipos distintos de jovens, os que estavam envelhecendo e os que estavam rejuvenescendo, mas, todos eram jovens, o que causava certa confusão na hora de perguntar a idade. Alguns, por exemplo, não gostavam de assumir que tinham cem anos, preferíam dizer que tinham trinta, que era a idade aparente. Para que pudessem diferenciar-se as duas classes de juventude, havíam criados as expressöes "ida e volta" , desse modo, uma pessoa de cem anos podería dizer que sua idade era de "trinta anos-volta", o que indicava que no ano seguinte completaria vinte e nove. De todas as formas, o choque de gerações era inevitável, porém, a "juventude de ida" prestava muito mais atenção nos conselhos de seus belos, esbeltos e modernos anciães, o que lhes proporcionava uma sociedade muito mais evoluída.

Assim é que, os habitantes do mundo das duas infâncias possuiam muitas vantagens sobre nós. Podiam, por exemplo, curar doenças com o simples passar dos anos. Era freqüente um idoso ir ao médico e escutar um diagnóstico como: -Nada de comer sal enquanto não completar cinqüenta anos outra vez.

Outro caso interssante era o dos atletas. Um jogador de futebol se despedia dos gramados aos quarenta anos alegando já sentir o peso da idade. No caso de tal jogador virar uma lenda do esporte, as gerações futuras aguardavam ansiosamente por cinqüenta anos até que o jogador recuperasse sua forma física pouco a pouco, e assim, comprovar se era verdade o que seus pais diziam do tal futebolista. Logo abandonava o esporte definitivamente quando completava dezessete anos pela segunda vez numa exibição de gala. Provavelmente jogando a melhor partida de sua vida, uma vez que, estava no auge de sua experiência e de seu vigor físico.

Havia obviamente algumas complicações trazidas pela rejuvenescência. Imaginem o difícil que resultava às pessoas daquele planeta completar 'dezoito anos volta' e saber que no ano que vem lhes cassariam a carteira de motorista. Isso sem dizer que não podiam mais entrar nas boates que frequentaram por mais de noventa anos. Abandonar a bebida era outro problema.

E o que dizer das histórias de amor? Logicamente não havia tantas preocupações com a diferença de idade, pois, sabia que logo a situação se revertia, é dizer, senhores conquistavam jovenzinhas mostrando-lhes uma foto de sua primeira juventude: -Veja como estarei dentro de trinta anos.- diziam. Havia também a conhecida história do casal de adolescentes de quinze anos que se apaixonaram, mas, tiveram que desmanchar a relação três anos depois, porque ela, agora com dezoito, não queria mais saber daquele moleque de doze anos que mal tinha pelos no corpo, passava o dia inteiro jogando video-game e que ainda por cima era metido a inteligente.

Sem dúvida o mais interessante naquele mundo era a relação entre pais e filhos. Era muito freqüente que um casal planejasse um filho ao completar 'quarenta anos volta' só para que coincidissem a mesma idade pais e filho ao completar vinte anos. Em grande parte desses casos, os três se tornavam grandes amigos, saiam juntos pela noite, viajavam e faziam acampamentos; ainda que, houve alguns casos trágicos como do filho que se apaixona pela mãe, o que não é difícil de compreender se consideramos que o pobre menino passou toda a adolescência observando como a mãe ia ficando cada vez mais bonita com o passar dos anos.

Obviamente, os casais que decidiam ter filhos durante o rejuvenescimento eram muito mais atenciosos no carinho dado à criança, pois, sabiam que em poucos anos a situação seria ao revés. -Acho melhor levar o Dudu ao circo de uma vez, porque depois quando a gente for criança vai querer descontar e não nos levará ao zoológico. - diziam

Nunca nenhum habitante do mundo das duas infâncias rejuvenesceu mais do que os cinco anos de idade, de modo que agüentavam até o fim da vida sem necessidade de atenção especial. Conservavam a sabedoria e a cultura armazenada pelos anos, porém, seus espíritos se reanimavam junto com seu corpo, solterrando todas as angústias e desventuras acumuladas durante toda uma vida. Se tornavam mais sonhadores e idealistas à medida que suas barbas iam ficando ralas, e, quando completavam dez anos de idade pela segunda vez combinavam magicamente conhecimento e inocência e nada naquele mundo era mais fantástico do que uma criança de cento e vinte anos vivendo as fantasias de seu mundo pueril sem se importar de estar no leito da morte, pois, crianças nunca têm medo da morte e lidam com esse assunto muito melhor que os adultos.

Não morriam de invalidez, o que experimentavam era um mortífero excesso de vitalidade. O conjunto de sensaçöes experimentadas em mais de cem anos de vida completamente útil combinado com a ilusão e a vontade de viver de uma criança resultava em uma mistura potente demais para um coração infantil. Morriam de felicidade, invariavelmente faleciam após um momento feliz que seus diminutos corpos não puderam mais suportar. Então, por exemplo, chegava aquela tarde que chove fininho e aquele menino se coloca debaixo da coberta para comer bolachas e assistir desenho animado enquanto escuta a chuva bater na janela e trazer aquele maravilhoso cheiro de terra molhada. Fecha os olhos e sente uma sensação gostosa de que algo se desprende de dentro de seu corpo e dorme para sempre sem perder aquela expressão bonita que as crianças têm quando dormem.

***


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Comments:
Um texto absolutamente original e comovente.Uma leitura deliciosa, com situações inusitadas e bem humoradas.Um raciocínio filosófico que certamente provoca no leitor uma melancolia inevitável.
Um final poético, sem ser piegas, que deixa o leitor com os olhos rasos d'água.
Esse é o tipo de texto que dá vontade de copiar e enviar para os amigos.
 
Muito bom, original e divertido. quem disse que há falta de bons roteiros?
 
Simplesmente fantástica. Sua história nos faz refletir e, sem dúvida, me fez repensar se realmente sei escrever... risos...
 
Fico contente que vocês tenham gostado do texto. E olha que eu escondi ele por um bom tempo, pois, não achava legal e tinha vergonha de publicar.
Eduardo eu já respondi pelo orkut que pode mandar o texto por e-mail pra quem quiser, basta indicar a fonte.
Hemeterio, é engraçado escutar vocÊ falando de roteiros, quando vim pra Espanha, pensava estudar roteiros, nunca pude. Hoje já até tinha me esquecido disso, até você lembrar.
Elton, passei pelo seu blog, sim que você sabe escrever. Está nos meus favoritos.

Abraços a todos
 
Puxa, Thiago: Haja originalidade!

Ai... (suspiro profundo), tô com os olhos marejados e o que mais queria neste momento era pertencer a este mundo que você criou.

O texto é lindo e merecem destaque os personagens que vão surgindo em seu decorrer, nos fazendo refletir sobre nossas próprias vidas.

E fica a reflexão: se não podemos rejuvenecer com toda a sabedoria de um ancião, por que não envelhecer com a singular simplicidade de uma criança, não é?

Parabéns!
 
Lucieide, emocionado fico eu ao ler esses comentários.
beijos.
 
Adorei a história , emocionante e criativa , parabéns .
 
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