24 de agosto de 2006
Histórias curtas pra quem tem preguiça de ler. (E pra quem não tem tempo de escrever)
A senhora que coloriu sua morte
(autor: El hombre maíz)
Era uma vez uma senhora que estava muito doente. Os médicos estavam tão desacreditados pelo seus estado de saúde que comunicaram à ela e sua família que lhe restavam pouco mais que três meses de vida. A senhora então, resignada por seu destino resolveu gastar os últimos dias de sua vida realizando seus últimos desejos. Um desses desejos era o de pintar um quadro. Ao menos um. Um que ficasse para a posteridade e representasse toda sua vida em cores.
Sempre quis ser pintora, mas, os filhos, o trabalho, o marido, toda a rotina sempre conspiraram para que ela adiara esse sonho até esses últimos dias. Comprou a tela, a tinta, os pincéis e pintou seu primeiro quadro. Ficou horroroso, obviamente, mas, a família entrou de acordo que a última coisa que a pobre senhora necessitava ouvir nesses dias era um comentário sincero sobre seus dotes artísticos.
Assim que a família não mediu elogios sobre a horrenda gravura pintada pela moribunda. E foi então que a senhora sentiu-se tão lisonjeada pelos agrados proferidos por sua família que resolveu pintar um segundo quadro. Algo mais completo e mais profundo. Mais do que sua vida em cores, queria uma mensagem para a humanidade que sobreviveria após sua morte. E todos entraram de acordo que seu segundo quadro não estava nada mal, caso tivesse sido pintado com os pés, mas, ela havia utilizado as mãos, as duas, ainda por cima. Mas, ainda assim, resolveram enaltecer sua obra.
E foram passando-se os últimos dias daquela senhora em meio a elogios descabelados por sua terroríficas pinturas. Pareciam piorar cada vez mais. Quanto mais confiança ela ganhava em si mesma, mais auto-crítica ela perdia e menos elaboradas eram suas telas. Não interessava se estava tentando fazer surrealismo, ou expressionismo, tudo parecia arte abstrata, e das más! Daquelas bem abstratas mesmo. Tão abstrata, mas, tão abstrata que tinha que se esforçar muito para encontrá-la, se é que ela existia.
A família ainda apoiava. – Coitada. Deixa ela morrer feliz. – Diziam entre eles.
Acontece que a senhora não morreu. Seja por milagre, seja por erro médico, àquela senhora ainda restavam muitos anos de vida. Anos esses que ela decidiu dedicar por completo à sua obra. Dizia que queria expor em museus, queria surpreender público e crítica. A família decidiu que o melhor a fazer seria contar a verdade sobre sua falta de talento, aliás, concordavam em que ela seguisse pintando, contratasse um professor para que lhe auxiliasse, mas, que fosse mais humilde em seus objetivos.
A senhora não deu ouvidos à sua família. Se afastou de seus parentes porque achava que estar entre ignorantes atrapalhava sua criatividade. Largou tudo pro alto pra começar sua nova vida como artista. Tentava todos as escolas, desde renascimento à dadaísmo, nada funcionava. Ultimamente dizia estar em sua fase pré-rafaelista que sabe lá Deus que bicho ia dar aquilo. Nenhuma galeria queria expor seus quadros. Seu avalista recomendou que ela deixasse de pintar em lenços e passasse a usar pedras desgastadas como tela, para que assim tentasse vender-las como pinturas rupestres, mas, ainda assim, teria que fazer um trabalho menos primitivo.
Anos mais tarde, deu-se conta de sua total inaptidão para a arte e pensou que melhor seria ter aceitado aquele destino que se havia apresentado alguns anos antes. Desejou ter falecido naqueles duros dias que havia passado doente. Teria sido uma morte mais digna. Resolveu então apressar seu destino e se suicidou. Até que algum dia alguém resolveu publicar a triste história da artista incompreendida que sobreviveu à doenças terminais, ao abandono e às mentiras de sua família e morreu solitária sem nunca ter vendido um quadro sequer. Hoje sua pinturas valem uma fortuna.
Moral da história: Arte carece de qualquer critério, e isso é bom e ruim.
2 - outro dia vi o Paulo Ricardo numa entrevista falando que no começo da carreira achava a voz dele horrível para o rock. Pensei na hora: "onde foi parar a autocrítica que esse cara tinha no começo?", e me lembrei do seu conto também. Essas coisas sào muito adaptáveis às bagaças que somos obrigados a ouvir por aí.
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